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O quarto de Giovanni (James Baldwin)

Dias atrás, tentei explicar o que era poesia a meu irmão – essa arte de condensar significados, de selecionar um conjunto reduzido de palavras e oferecer um recorte amplo do mundo. O espaço reduzido do quarto de Giovanni tem função semelhante: nos poucos metros em que convivem os protagonistas da obra, a linguagem poética de Baldwin ultrapassa todos os vãos para oferecer um retrato completo de Paris, dos amores e da sensação de permanente exílio.

Não apenas nas descrições dos ambientes se mostra a verve intensa da escrita do autor: seus diálogos são igualmente profundos, com discussões de bares que são realmente pura filosofia. É difícil não se render ao talento desse escritor, ainda tão pouco comentado e traduzido por aqui.

As ressalvas em relação à obra são anacrônicas, mas nem por isso menos justas: apesar de ser um romance homoafetivo, é uma obra extremamente machista. O desprezo pelas mulheres é descarado, beirando a violência em vários pontos. 

Mas, no fim das contas, é um livro que nos marca (ainda que com incômodos sérios). E o final do romance é um dos mais belos que já li, um fecho precioso para uma narrativa impressionante.



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