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Mostrando postagens de junho, 2017

Vidas em fuga (filme de 1960)

Com um pouco de atenção, podemos observar que a influência dos clássicos greco-romanos se mantém até hoje. Desde os oradores de milênios atrás até as tecnologias mais avançadas de produção cinematográfica, é como se sempre, de alguma maneira, estivéssemos contando as mesmas histórias. Talvez porque nada de novo se cria sobre a Terra; talvez porque ainda não tenhamos apreendido os significados plenos dessas narrativas primordiais. "Vidas em fuga" é um reconto da descida de Orfeu aos ínferos em busca da mulher amada - mas com o toque do teatro magistral de Tennessee Williams. Protagonizado por Marlon Brando (em uma atuação excepcional), o músico e garoto-problema em que se centra a narrativa é alguém sem lugar definido no mundo, não casualmente apelidado de "Pele de Cobra". Igualmente escorregadio e mutável, o personagem é uma fonte de surpresas a cada cena - não pelo exagero, mas sim pela circularidade e amplitude do seu caráter. A mulher "resgatada"

O homem que confundiu sua mulher com um chapéu (Oliver Sacks)

Ainda que o título do livro seja delicioso e gere a imediata curiosidade do leitor, a desconfiança em se ler uma obra da área médica sempre é grande - como leitora, me assustava com a possibilidade de termos técnicos impronunciáveis e relatos exageradamente céticos, exatos, reprodutores de verdades inquestionáveis da Ciência. E como é maravilhoso encontrar um autor que desmente todos esses (e outros) preconceitos! A escrita de Oliver Sacks é viciante. E, ainda que seja leiga na área, o autor não parece deixar a desejar no quesito metodológico. Comparado por muitos a Freud, por seus relatos de caso que não omitem a personalidade do paciente, Sacks advoga em nome de uma ciência mais humana, que enxergue o paciente em sua complexidade e não o reduza a efeitos de uma enfermidade. O caso que intitula a obra é apenas um dos muitos narrados pelo neurologista. Para aqueles que amam uma boa narrativa, é incrível perceber o quanto a mente humana é capaz de criar histórias mais profundas e su

Humano (filme de 2013)

A ideia da vida como viagem é um tópos de inúmeras culturas e épocas. E, se estamos no mundo a passeio, nada melhor que uma longa caminhada para repensar os motivos da existência, na busca de respostas - ou, ao menos, de boas indagações. "Humano" retrata uma trilha nos Andes de um jovem argentino ao lado de um sábio da cultura indígena Saqra. O filme é uma tentativa de mostrar as 200 perguntas feitas pelo diretor/protagonista do longa ao seu guru espiritual. Ainda que seja, em princípio, um walk movie , as paisagens na tela não são o ponto principal de encanto (apesar de serem cenários lindos, os recursos técnicos para mostrar os diferentes lugares são insuficientes). O grande destaque são os diálogos entre esses dois humanos, que guiam toda a linha da história em busca de revelações e descobertas.  Trata-se de um filme filosófico, intimista e extremamente rico ao nos colocar em contato com a cultura ancestral dos indígenas. É uma excelente introdução ao misticismo/sabe

Cartas extraordinárias (Org. Shaun Usher)

Todos temos curiosidade pela correspondência alheia - seja pelo vazamento de arquivos confidenciais, a la WikiLeaks, ou por bisbilhotar mensagens via celular. Restringindo seu escopo preferencialmente às cartas manuscritas, ainda assim esta antologia consegue satisfazer a indiscrição de gregos e troianos. A diversidade de temas e autores se, por um lado, pode tornar o livro bem desigual, por outro garante a identificação de todo e qualquer leitor. Há desde a carta de Jack, o estripador, relatando o quanto se deliciou com a carne de sua vítima, até uma receita de scones  que a rainha da Inglaterra havia prometido ao presidente dos Estados Unidos. No meio dessa variedade, muitas cartas emocionam (como os bilhetes de suicídio), fazem rir, aquecem o coração. É difícil não sentir empatia, ainda que ela não seja contínua e nem se aplique a toda a seleção. A edição, com muitos fac-símiles , ajuda a construir a ideia de invasão de privacidade que, no fundo, é o que anima o leitor de cartas

A vida é bela (filme de 1998)

Desde o título, "A vida é bela" é um filme amoroso. Os personagens são construídos para serem cativantes, reunindo em si todos os elementos que causam a simpatia imediata do espectador: o humor leve do pai, a inocência da criança, a entrega e o sacrifício da mãe. Inscritos no gênero da comédia, esses protagonistas parecem mais verossímeis, e os maniqueísmos são relevados em função do gênero. Afinal, é uma trama feita para encantar - uma espécie de conto de fadas sobre o nazi-fascismo. Ainda que, como espectadora, tenha me deixado levar pela história comovente representada, algumas reflexões mais sérias pipocaram durante a exibição. Não consigo avaliar até que ponto concordo ou não com as escolhas ideológicas do filme. Ainda que seja senso comum que todas as histórias cruéis sobre a Segunda Guerra já foram narradas, a verdade é outra. Evitamos o lado real e mais desumano dos crimes perpetrados nessa época em prol de relatos comoventes e de superação. E tanto já nos esquecemo

Gratidão (Oliver Sacks)

Em tempos de informações compartimentadas, é difícil encontrar ícones que sejam admirados, na mesma proporção, em campos diferentes do conhecimento. Este é o caso de Oliver Sacks, neurologista estadunidense que soube adotar um discurso mais humano ao discorrer sobre a sua ciência. Comparado por muitos a Freud, por dar nome, identidade e reconhecer cada um de seus pacientes como um ser único, o autor vai além da linha de uma "ciência dura", criando intertextualidades enriquecedoras. Se esta verdade já se aplica a seus estudos de caso, mais ainda se intensifica quando o analisado é ele próprio. Este é o caso de "Gratidão", livro de textos curtos em agradecimento à vida que se esvai. Diagnosticado com câncer, Sacks compõe uma série de artigos pequenos, porém intensos, de reflexão sobre o seu ser e estar no mundo. Não são textos melancólicos, mas são extremamente tocantes. Como se já não bastasse a situação de defrontar-se à morte para nos comover, o escritor po

A mulher mais odiada da América (filme de 2017)

O título pomposo do filme é uma referência real à fama de Madalyn Murray O'Hair, fundadora da sociedade ateísta ( American Atheists ) nos Estados Unidos. Aliás, as pontes com a realidade não param por aí; a obra tem cunho biográfico e pretende resgatar um pouco da história desta figura verdadeiramente iconoclasta. Narrada com flashbacks , a trama principal gira em torno do sequestro da protagonista por um de seus ex-funcionários. Por ser muito atrevida, desenvolta, a personagem por vezes nos faz esquecer que acompanhamos uma situação de encarceramento e violência - o que torna o desenlace muito surpreendente. Como documento histórico, contudo, a narrativa tem falhas. Em uma busca rápida na internet, consegui desmentir muitas das informações veiculadas na trama. Houve uma espécie de edição dos fatos para que coubessem em um modelo de filme de 1h30, padrão Netflix. Ainda assim, é uma obra capaz de estimular a reflexão para além do binômio ateístas x cristãos. Um dos pon

Ressurreição (Machado de Assis)

Primeiro romance publicado por Machado, "Ressurreição" já traz um ou outro traço da fina ironia que caracterizaria o estilo do autor. Contudo, é uma obra de poucas surpresas, que se atém ao script  do Romantismo; vale mais como documento histórico, de crítica genética, do que por algum valor intrínseco. Redundam nesta narrativa de estreia o tom hiperbólico, os saltos temporais mal explicados e os personagens circulares. O aspecto mais atrativo da obra, para os grandes fãs de "Dom Casmurro", é descobrir a origem remota de Bentinho nos escritos machadianos. O personagem já vem todo esboçado nesta trama de principiante, assim como aspectos de uma futura Capitolina. O prazer da leitura é ir descobrindo esses traços que, posteriormente, culminariam em um dos maiores romances brasileiros/universais. O protagonista, Félix, é um homem extremamente frágil, inseguro, corroído a todo momento pelo ciúme e facilmente enganado pelas falsas pistas de uma possível traição. De f

Vênus (filme de 2006)

A maior obscenidade contemporânea não é, de modo algum, relacionada ao sexo. Pelo contrário: o que mais nos choca não é a vida em sua efervescência, mas em seu declínio. Poucos temas incomodam mais do que a velhice - ainda que seja uma maturidade plenamente vivida, como é o caso dos protagonistas deste filme.  O contraste entre um protagonista idoso e uma personagem bastante jovial é outro aspecto que corrobora o tom de estranhamento que "Vênus" causa. Ainda assim, aos poucos é possível perceber que o objetivo não é o de narrar uma nova Lolita, mas sim de opor dois polos da vida. De um lado, o ator com uma carreira consolidada, apreciador da arte e consciente do fim próximo; de outro, uma menina inconsequente, sem vínculos ou amores mais profundos pela cultura que a cerca. Tendo como fio condutor a obra "Vênus no espelho", de Velázquez, o longa trabalha com a ideia de autoconhecimento - seja das potencialidades do próprio corpo, seja da descoberta da Arte enquan

Cem melhores crônicas (Mario Prata)

Sem nunca ter, de fato, ocupado um lugar de primazia dentre meus cronistas preferidos, Mario Prata já me trouxe algumas leituras leves, descompromissadas, pautadas por um tom informal, de bate-papo com o leitor; dentre elas, por exemplo, está o divertido "Diário de um magro", que relata as travessuras do narrador dentro de um spa. O que sempre me incomodou na escrita do autor não foi propriamente o seu estilo, mas a sua excessiva liberdade; a título de ilustração, vale comentar seu livro mais conhecido, "Mas será o Benedito?", que cria falsas etimologias para várias palavras da língua portuguesa. Um leitor mais desavisado, que "compre" as histórias oferecidas pelo escritor, sairá deliciado da experiência, mas igualmente repleto de informações equivocadas. Nas 100 crônicas (que, na verdade, são 129), não há este aspecto megalomaníaco de Prata, o que torna a leitura mais crível - e prazerosa. Nem sempre o tom empregado pelo autor está desprovido de algum

Animais fantásticos e onde habitam (filme de 2016)

Ao contrário de outras produções para o cinema adaptadas da obra de J.K. Rowling, "Animais fantásticos" consegue a primazia de tornar a história narrada nas telas mais interessante do que o seu par literário.  Em todas as versões filmadas de Harry Potter, sempre houve uma infantilização maior do que a necessária, reduzindo o amadurecimento dos personagens a episódios superficiais, sem lidarem de fato com a dor ou com a perda (diferentemente do que ocorrem nos livros da série). Nesta obra, menor dentro do universo criado pela autora, não há problemas sérios na construção dos protagonistas; inclusive, eles parecem mais bem desenvolvidos, a fim de preencherem o enredo de um longa-metragem. Se a trama, no geral, não chega a ser surpreendente, por outro lado ela consegue garantir um bom entretenimento ao espectador. As atuações são divertidas, mesmo que ligeiramente estereotipadas, e os efeitos especiais - usados na medida certa - não ofuscam a verdadeira magia do cinema.

A estrada interior (filme de 2014)

O plot do filme pode ser resumido a um road movie  sobre três jovens com diferentes distúrbios psicológicos. Por não ser da área, não sei avaliar até que ponto as síndromes de cada personagem foram retratadas de forma séria ou verossímil (ou nem se, de fato, esses distúrbios podem todos ser classificados como síndromes). No entanto, como parte do público leigo, a obra me atraiu, ainda que com ressalvas. Um dos pontos que me incomodou foi a transformação de alguns personagens ao longo da trama, que pareceu muito súbita. O retrato feito dos jovens, ainda que seja interessante para o espectador, por vezes é um tanto superficial. O trio maconha-rebeldia-sexo, por mais que seja usual, parece ser o suficiente, no filme, para definir toda uma geração de jovens, não importando o quão diferentes sejam as suas histórias, ânsias, sonhos. Sob esse ponto de vista, trata-se de um longa um tanto pasteurizador. A narrativa funciona, atinge seus objetivos, mas não vai além do norma l - ainda que ten

Gaturro 1, 2, 3 (Nik)

Gaturro é mais um daqueles quadrinhos argentinos que são gostosos de ler, bem elaborados, e que em nada deve à grande tradição de cartunistas na terra dos hermanos. Ao contrário de uma Mafalda ou de uma Henriqueta, o gatinho protagonista das tiras realmente se atém à linguagem infantil, sem uma crítica social tão apurada. Trata-se de um humor mais leve, talvez adequado a crianças menores. O traço dos quadrinhos é maravilhoso, com ótimas escolha de cores, brincadeiras com as formas... enfim, pequenas obras de arte. O conteúdo de algumas tiras é bastante didático - não por lidar com moralismos, mas sim por trabalhar muito vocabulário básico a aprendizes da língua espanhola. Três amorezinhos de livros, em suma.

O semeador (Gabriel Chalita)

Um livro extremamente previsível e moralista - e, como parece sempre acontecer com Chalita, com carinha de plágio, de texto que já foi lido em algum outro lugar (e muito mais bem escrito na fonte).

Bibliotecas do mundo (Daniela Chindler)

Um livro que é inteiro delícia: gostoso de folhear, de acompanhar as ilustrações de artistas diversos, de saber de histórias que remontam ao antigo Egito e de outras que se passam aqui, ao nosso lado, quase desconhecidas. E o fio condutor de toda essa magia são as bibliotecas, templos de leitores em diversos lugares e épocas do mundo. O passeio que a obra propõe é muito interessante de acompanhar, recolhendo curiosidades sobre a fabricação do objeto livro (como um famoso erro de tipografia em uma dedicatória de Machado de Assis - o "cegara" se transformou em "cagara"), sobre leitores históricos (como a devoradora de livros - e de homens - Cleópatra) e sobre bibliotecas tão diversas como a de Alexandria quanto a que vai sendo transportada no lombo de um burro pelo interior da Colômbia. É uma daquelas obras que falam dessa paixão tão requintada, desse amor tão acalentador pela leitura. Prazer similar ao de devorar bolinhos de chuva com café em uma tarde fria de in